Uma invenção para a Idade Moderna

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A exposição de Leonardo da Vinci, “500 Anos de um Gênio”, no novo MIS Experience, inicia com a disposição de alguns dos seus códices e com uma frase lapidar do artista: “Fico impressionado com a urgência do fazer. O saber não é suficiente; devemos aplicá-lo.”

Sua vida, analisada, principalmente, a partir de sua obra, há de afirmar a multidisciplinariedade de sua alma: devota da ordem da natureza, de cujas leis procura compreender a fim de trazer às suas invenções.

Os pintores do século XV haveriam de ganhar notoriedade muito além do que artistas de gerações passadas, pois, seguindo o entendimento caro à Antiguidade, o papel do artista era o de um artesão, um contribuinte às artes servis (sapateiro, marceneiro, ourives, etc), até o surgimento de Giotto di Bondone. A figura deste grande pintor, ao contrário, ofusca tudo o que se conhecera por pintura até o século XIV, século em que viveu, elevando a capacidade dessa disciplina.

A que se deve tal mudança de perspectiva com relação a uma área do conhecimento? Essa transição de consciência na sociedade não se dá por processo simples. Basta perceber como a ciência tem hoje holofotes em si com relação à filosofia (mesmo que esta última ainda hoje responda aos nossos problemas com muito mais profundidade que a primeira). Parece que, além de diversos fatores que poderão proporcionar essas mudanças, o surgimento de figuras geniais é o que mais transforma o panorama geral. E daí segue que o pintor deverá, por meio de outras disciplinas, buscar provar a importância de sua área.

A lamentação (1303-05), Giotto di Bondone

A autonomia das artes, típica da Idade Moderna, não se inicia com Leonardo e nenhum de seus contemporâneos. Na verdade, ela se legitima na mão desses, porque, quem realmente a desponta, é Giotto na pintura e Dante Alighieri na poesia. Giotto tinha como propósito provar como suas imagens poderiam ser autônomas e não apenas servirem de ilustração para as sagradas escrituras, ao contrário, elas contariam uma história muito mais comovente, por conta da cena ser desenhada de maneira mais convincente que o estilo bizantino fizera, até então, através das iluminuras, repletas de adornos e despreocupadas com a espacialidade, em nome de preservar a simbólica cristã. Desse modo, poderíamos dizer que Giotto dá subsídios para que surja, mais adiante, um Renascimento das artes, e, por fim, um Leonardo.

O que o artista do Trecento (como os historiadores denominam o século XIV) recorreu aos textos sagrados para que sua imaginação tivesse contato mais íntimo com a fonte dos temas que pintava, assim Leonardo, no Quattrocento (século XV) fará com relação a todas as pinturas às quais se dedicar, como fez na Última Ceia, além de também voltar os olhos para a natureza. O que o leva a advertir que não se deve pintar à sombra exclusiva de um mestre: “o pintor nunca deve imitar a maneira do outro, porque então será chamado de neto da natureza e não de filho”. É relevante lembrar que qualquer homem daquela época tinha, para si, uma enorme dívida a cumprir com a tradição de sua cultura e jamais faltaria com a merecida admiração, pois o fato é que, para Leonardo, o artista, em seu processo de amadurecimento, dependerá da cópia dos mestres, sendo esta crucial ao bom desenho e aperfeiçoamento da linha.

A vida de Leonardo se resume à sua vida intelectual. Do mesmo modo como os santos se dedicam às leis divinas, a todo tempo se dedicou a ser um exímio pintor. Quando, por exemplo, se lançou a estudar biologia através de centenas de animais que colecionava; a dissecar os corpos a fim de conhecer a fundo a anatomia; a estudar matemática com seu grande amigo Luca Paciolli, bem como compreender os fenômenos astrais, dentre inúmeras outras disciplinas que lançou mão, provam que seu gênio estava decidido de que a pintura era ciência tão alta que merecera profunda e séria pesquisa através de outras áreas no intuito de executá-la com excelência.

Tão longe estamos desse espírito numa época que, como alertou o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, só temos especialistas que, no lugar de ampliarem seu campo de pesquisa, muito ao contrário, só se separam do restante do conhecimento, se fechando e aprofundando a crise em tendências obtusas e unilaterais. Assim como Pitágoras leva a geometria até sua última importância, diferente dos egípcios que a compreendiam de maneira mais prática, Leonardo considerará a pintura como uma ciência, diferentemente de seus antepassados. “A pintura é coisa mental”, diz ele.

Não significa, com isso, que a humanidade antes dos renascentistas não fosse capaz de perceber a importância da pintura. Ao contrário, o homem antigo aprofundou tão excelentemente as disciplinas da geometria como símbolo das leis universais, auxiliada pela matemática em seu uso qualitativo (a tradição cristã é o berço desse conhecimento em plena Idade Média e isto é de conhecimento de todo homem do Quattrocento, principalmente de Leonardo) que não seria possível aos homens posteriores, a capacidade que viriam a demonstrar, se não fosse a herança do conhecimento dos antigos, compilado e reunindo como nos versos na Divina Comédia de Dante Alighieri.

A bela ferrageira, retrato de Lucrezia Crivelli (1490-1495), Leonardo da Vinci

A maior invenção de Leonardo está na pintura: é seu sfumato. Dentre tudo que poderia surgir à sua mente, todos os seus projetos militares, de engenharia ou utilitários, seus planos de vôo, a única coisa que se realiza de fato a sair da teoria e surgir à prática em sua completude é a inovação pictórica do seu tratamento delicado, que promove uma passagem laboriosa entre a sombra e a luz. Suas figuras “surgem da noite”, numa época em que prevalecia, entre todos os grandes pintores, um misto da técnica do chiaroscuro com a evidência dos contornos das figuras. Leonardo, à isto, se inquieta e demonstra que a pintura pode imitar a natureza no sentido de não separar os elementos da composição com contornos. Não há linha na existência física; tal é apenas uma abstração provisória da pintura herdada pelo raciocínio natural do desenho. Com efeito, até o desenho do grande gênio é isento de linha. Seu sfumato no carvão sobre o cartão é ainda mais comovente.

Leonardo é enorme porque, como Aristóteles na filosofia, mergulhou em todas as disciplinas possíveis a fim de alimentar e dar força ao seu trabalho, construindo um edifício até chegar ao cume da pintura, entendendo, dessa maneira, que as disciplinas às quais se permitiu estudar, foram, no mais, andaimes, ferramentas e instrumentos para a realização dessa grande construção pictórica. Seu objetivo sempre foi, através do órgão tomado por ele como mais importante no ser humano, “tornar visível o invisível”.

Estudos preparatórios sobre cartão para a pintura A Virgem e o Menino com Santa Ana (por volta de 1508), Leonardo Da Vinci

Leonardo não é arquétipo da perfectibilidade que o homem pode alcançar. A esse patamar, reservaríamos aos santos. Porém, diante de sua biografia, localizamos, praticamente, apenas sua humanidade: de caráter inseguro, auto-exigente, abandonando quase tudo a que se compromete a realizar. Entretanto, é diante de sua trajetória que ele nos torna uma referência. É um homem que, hoje, deveríamos reconhecê-lo como exemplo a seguir, no sentido de buscar a perfeição, custe o que custar. O quanto estamos afastados desse espírito de incansável pesquisa e de amor ao conhecimento?

Uma lei, válida apenas para uma região, se não se subordina às leis transcendentais, é uma lei provisória.” SANTOS, Mário Ferreira, Filosofia da Crise, p. 51, É Realizações, 2017, São Paulo.


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